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A Escada de Jacó

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Um homem só, a meio de uma viagem, pára, apoia a cabeça numa pedra bruta e sonha. Esta é a história de Jacó. É a minha, é a nossa história. 

Quem é Jacó e que viagem é essa?

Jacó começa por ser aquele a quem a desgraça acontece. Uma pluma ao vento.Aquele que causa prejuízo sem o querer ou prever as consequências dos seus gestos. Faz o que outros fizeram antes dele: obedece aos mais velhos, aspira ao reconhecimento do patriarca, faz, meio autómato, o que lhe parece óbvio e natural. Jacó é aquele que ouve, executa o que lhe pedem, não protesta nem quando é expulso. Na solidão, na noite, na fragilidade do exílio, toma duas primeiras iniciativas: parar e apoiar a cabeça numa pedra. Cito Bob Dylan, prémio Nobel da Literatura em 2017, no poema “Like a rolling stone”: 

How does it feel?
How does it feel
To be without a home
With no direction home?
Like a complete unknown?
Like a rolling stone?  

 

 

No chão, apoiado na sua origem mineral, o homem parte para uma outra viagem, agora vertical, agora através do sonho. O caniço pensante, o roseau pensant de Blaise Pascal, faz aquilo que sabe fazer quando não lhe resta mais nada: viajar pelo pensamento. Levantado do chão. 

Também eu te digo, Jacó, tu és pedra e, sobre essa pedra, construirás a tua força. 

O Jacó de Ludmila Ulitskaya, candidata a prémio Nobel da Literatura em 2020, é o resistente, obstinado otimista irritante, que ano após ano, década após década, no fundo de um gulag na Sibéria, procura o conhecimento, lê Einstein, lê Kant e Schopenhauer, melhora o inglês, o alemão, aprende o lituano, estuda musicologia e planeia cuidadosamente cada hora de estudo, porque lhe falta tempo para tanto mundo que quer abraçar, dali do barracão, à luz do candeeiro a petróleo e no gelo da reclusão. Cada dia, hora a hora, subir a escada do conhecimento, como homem livre. 

O sonho dos sonhos

No Livro de Génesis, produto do Criador, muitas vezes teimoso e rebelde, o homem, quando sonha, sonha atingir o mais alto, sonha chegar aos céus. Jacó sonha que uma escada, assente na terra, liga a terra ao céu e por ela descem e sobem anjos. Portanto sim, a ligação é possível. Outras ligações terra-céu não funcionaram. Fracassou Babel, a solução de elevação pela via da alvenaria, imaginada pelos homens e prontamente sabotada por Deus, também relatada no Livro de Génesis. 

Na Ilíada, Júpiter refere a solução de uma corrente de ouro a ligar terra e céu. Mas usa-a como ameaça, como demonstração da sua força, incomensurável e esmagadora. Diz-se capaz de puxar a corrente de ouro para o lado do céu,  mesmo que todos os outros deuses se colocassem ao lado dos homens, a puxá-la para a terra. 

Diz Zeus no Canto 8 da Ilíada: 

 

"Do céu pendurai uma corrente feita de ouro

e agarrai nela, ó deuses todos e deusas todas!

Mas não arrastaríeis do céu para a planície terrena

Zeus, o sublime conselheiro, ainda que vos esforçásseis.

Porém no momento que eu quisesse puxá-la,

arrastaria a própria terra e o próprio mar;

e de seguida ataria a corrente à volta do cume do Olimpo,

e todas as coisas ficariam suspensas no espaço:

em tal medida sou superior aos deuses e aos homens."

 

Bastou a ameaça do deus maior e cada um manteve-se no seu lugar, pelo menos por um tempo. A ideia da Corrente de Ouro de Homero – Aurea Catena Homeri – não caiu completamente no esquecimento e inspirará mais tarde a investigação dos alquimistas. Um encadeamento de dez anéis abre ao entendimento do homem caminho até à perfeição do Uno, ao mesmo tempo céu e terra, no seu último anel. 

Ao mesmo tempo terra e céu, superior e inferior, a escada que leva ao infinitamente grande será a escada que nos leva também ao infinitamente pequeno? Jacó sonha uma escada e é uma escada que encontramos  ao investigar o infinitamente pequeno,  a estrutura de aminoácidos no nosso código genético. 

No Livro de Génesis, Jacó sonha e a solução do sonho, para ligar céu e terra, ganha em eficácia todas as outras: a mensagem divina tem a vantagem de ser clara e direta. Jacó ouve de YHVH a promessa de proteção. 

“Estou contigo, responsável por ti, por onde quer que vás. Far-te-ei regressar para esta terra. Não te hei de abandonar.”

Jacó acorda e toma mais duas iniciativas: primeiro, fixa na vertical a pedra, unge-a com azeite, decidindo assim o seu carácter sagrado. De rolling stone, Jacó torna a pedra marco, estela, altar, casa da ligação.  Em seguida dá novo nome ao sítio onde sonhou a aliança: Betel, Casa de Deus, Porta do Céu, “que antes se chamava Luz”. 

Que promessa ouviu Jacó no seu sonho?

É proteção que YHVH promete a Jacó: dou-te esta terra, vai e eu te trarei de volta aqui, a ti e aos teus. 

Quem são os “teus”?

Todas as famílias da terra serão benditas através de ti e da tua descendência.

No romance de Ludmila Ulitskaya, a neta de Jacó, em 2010, encontra a correspondência  escrita pelo avô no gulag. Cenarista em Moscovo, trabalha sobre uma representação da escada do Jacó bíblico e questiona-se: que sentido faz a promessa de proteção, quando sabemos que aconteceu a Shoah? Quando sabemos que aconteceu o gulag? E o cenário que desenha, de escadas assentes na terra a subirem até a um céu tenebroso e escuro, é de paisagem queimada, vazia, abandonada, desolada e negra. 

A neta de Jacó lê o livro de Génesis depois da Shoah, depois da perestroika. Eu leio numa situação de pandemia. O texto bíblico cintila de modos diferentes, com novas questões, de acordo com o aqui e o agora da experiência pessoal. 

Sonho Jacó a sonhar o elo terra/céu.  Sonho YHVH a devolver-lhe uma responsabilidade de elo terra/terra: “Através de ti e da tua descendência, todas as famílias da terra.”

Sonho um “Ninguém ficará para trás”. 

Unus pro omnibus. Omnes pro uno. 

Nenhum homem estará protegido, se algum homem não estiver protegido. Na procura do conhecimento, da paz ou da saúde. 

20.07.20 (e.'.v.') 

A. C. Neto